O Ver-o-Fato lamenta informar que acaba de falecer em Barcarena, na UPA daquela cidade, o homem que criou a guitarrada: Mestre Vieira. Desde 2016 ele vinha lutando contra um câncer de próstata. A música paraense perde, fisicamente, uma das suas mais genuínas representações. Sua última entrevista foi concedida, ano passado, ao jornal "O Estado de São Paulo". Ei-la:
"Uma tarde em uma sala de cinema de Belém e o impensável se
tornaria possível naquelas terras do Norte. Guitarra ainda era objeto
das galáxias e guitarrista um ser mitológico quando Vieira viu na tela
grande, com seus 14 anos, um homem tirando de um instrumento desses uma
música que nunca havia passado pelo mundo.
Vieirinha pegou o barco de
volta ao povoado de Barcarena, ainda em estado de choque. O bandolim que
sabia tocar graças ao incentivo do pai português tinha, em algum lugar
do planeta, um primo maior, mais robusto e mais pesado com uma
sensibilidade de fazer chorar. Vieira precisava de uma geringonça
daquelas. “Eu quero tocar aquele pau elétrico.”
Mestre Vieira, aos 82 anos, fala baixo ao lembrar da
própria história. Ele tem feito isso mais vezes depois de uma
reavaliação pela qual passou a música paraense nos anos 2000 e, mais
profundamente, diante das câmeras da jornalista Luciana Medeiros, que já
finalizou um documentário, Coisa Maravilha, a Invenção da Guitarrada,
para ser exibido no segundo semestre.
Vieira recebe o Estado em sua casa
na mesma Barcarena em que nasceu, fez sua revolução particular e
permaneceu para torcer pelo Clube Atlético Barcarenense com a mesma
devoção que coloca na divindade dependurada na parede do quarto.
Ela está lá, uma guitarra Ibanez Artcore AF75 semiacústica de nome
Milagrosa. “Por que Milagrosa, Mestre?” “Porque eu faço com ela uns
milagres por aí”, diz. Foi assim desde o início, depois do bendito filme
do qual se esquece o nome. Sem uma loja na cidade que vendesse nada
parecido com aquilo, Vieira foi agraciado pela primeira bênção: um amigo
da Marinha lhe trouxe, de passagem pelos EUA, um instrumento novinho,
mas desmontado e sem manual de instruções.
Deus ensina a pescar sem dar o
peixe. O irmão marceneiro conseguiu pôr os parafusos na maioria dos
buracos e as cordas de aço foram aproveitadas de um violão da família já
na fila da Previdência. A guitarra estava pronta, mas não saía som. O
segundo milagre veio então pelas mãos de um padre italiano.
Entendido em
fios e alto-falantes, ele ensinou o garoto a usar a bateria de um carro
para energizar um sistema de rádio, primo distante de uma caixa
amplificadora, e emprestava as trombetas da paróquia para a propagação
do som. Já havia a guitarra e o amplificador, só faltava a banda.
Vieira saiu pelas
igrejas de Barcarena caçando talentos por trás dos hinos de louvor. O
baixista veio com o mesmo espírito arquitetônico de Vieira: seu baixo
tinha apenas duas cordas, não possuía trastes e só um captador de
violão.
Era o suficiente. Com mais Dejacir no vocal, Lauro na base e
Pereira na bateria, Mestre Vieira tinha sua tropa de choque intitulada
Os Dinâmicos para conquistar o mundo. E para lá foram eles.
A guitarrada inventada por Vieira saiu de uma técnica do
choro, da transposição pura da linguagem do bandolim que tocava para
seu novo instrumento. Apesar de seu fascínio inicial pelo rock, ele não
se contaminou pelo estilo que definiria a performance de outros
guitarristas. BB King?
Não conhece. Chuck Berry? Nunca ouviu falar.
Jacob do Bandolim? Um herói. Vieira criou assim a escola de guitarra
mais brasileira de todas, sem distorção, de bends discretos, fraseado
limpo. Mesmo quando é só instrumental, sua música é avassaladoramente
popular.
Desde o dia em que prenunciaria o futuro de um gênero colocando
o nome de seu primeiro disco de Lambada das Quebradas, em 1978, até o
documentário que em breve vai recolocá-lo em voga, Vieira lançaria 18
discos ao todo, na grande maioria LPs nunca editados em CDs.
“Viajamos a Fortaleza, Recife, Natal, Salvador. Depois,
fui conhecer Londres, que tinha aquele relógio grande na praça,
Portugal, Alemanha, África do Sul. As pessoas ficavam doidas com o som”,
ele conta, sem precisar exatamente os fatos e com movimentos lentos que
revelam a fragilidade física. O tratamento contra um câncer iniciado na
próstata tem alternado o estado de espírito de seus dias. “As histórias
estão todas no documentário”, conta Luciana Medeiros.
“Vieira já foi
reconhecido como patrimônio cultural de Barcarena.” Seu segundo projeto
sobre a história de Vieira e os Dinâmicos, que voltam à estrada graças
ao documentário se apresentando com três integrantes originais mais o
tecladista Luiz Poça, é uma série de animação com o nome da banda. E um
terceiro, um songbook com as principais músicas do mestre, deve servir
para deixar registrado em cartório todos os feitos de Milagrosa.
Por nunca ter querido deixar sua terra, Mestre Vieira
talvez tenha pago um preço alto por essa decisão. “Ele quis ficar e nós
acabamos não aparecendo tanto quanto poderíamos”, diz o guitarrista
Lauro, tentando entender por que Os Dinâmicos não foram levados pelas
graças da lambada quando esse gênero se esparramou pelo País. O fato é
que Vieira tem raízes profundas. Sua música, gravada até hoje em
estúdios barcarenenses, não foi domesticada nem embrulhada para
presente.
Uma Baleia inspirou o primeiro sucesso
O monstro chegou às margens de um dos rios da Baía do
Marajó, na ribeirinha Barcarena, em 1974. A baleia enorme debatendo-se
para sobreviver despertava a curiosidade das crianças, inspirava a fome
dos velhos e colocava uma ideia na cabeça de Joaquim de Lima Vieira, o
Mestre Vieira.
Estava ali o tema para uma nova música. A Lambada da
Baleia, gravada de forma independente naquele mesmo ano, chegou aos
ouvidos dos produtores locais da gravadora Continental, que passavam
pela cidade, apenas em 1976. Mais dois anos e seu primeiro álbum,
Lambada das Quebradas, sairia pelo selo.
À revelia de Vieira e sem o conhecimento da própria
gravadora, o Nordeste recebeu músicas como o Melô do Bode com uma
euforia surpreendente. Vieira e os Dinâmicos só saberiam do sucesso que
faziam no Recife, em Natal e Fortaleza quando pisassem nessas terras.
“Era incrível, tinha gente demais querendo autógrafo”, lembra o cantor
Dejacir Magno. Os aeroportos os recebiam com filas de fãs e os hotéis
com tratamento vip. Com um novo baterista, Jairo Rocha, os Dinâmicos fizeram
sua mais recente apresentação na sexta-feira passada, dia 7, no Sesc
Belém.
Os outros integrantes que seguem na estrada, enquanto Mestre
Vieira enfrenta o tratamento na luta contra o câncer, são Dejacir, o
guitarrista Lauro Honório, o tecladista Luís Poça, o jovem guitarrista
Dhiosy Marques e o baixista Cassiano Filho".
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