O título original desse artigo - cuja leitura é imperdível até o final - é "Psicose". Ele foi publicado anteontem no jornal "O Estado de São Paulo". É da lavra do cientista político e professor universitário Carlos Melo. Um diagnóstico preciso da enfermidade que assola o país, nessa busca insaciável por cargos e ministérios no governo de Dilma. E desnuda, também, a face do PSDB. Boa leitura a todos
Psicose
Carlos Melo
A estas chamavam “doenças da alma”: a propensão autodestrutiva,
o boicote interno, a fixação pelo erro, o vício da discórdia; o
autismo, a visão auto-referenciada desconectada do mundo circundante, a
traição atávica; a personalidade esquizofrênica, a indefinição
angustiada do ser, o medo pânico do futuro. Também a dificuldade em ler o
momento, a desatenção intransponível, a incompreensão da realidade, a
incapacidade de aprender, a dislexia tática. Tudo transbordou do
indivíduo e tomou o corpo coletivo da política.
Governo, PMDB, PT, PSDB
estão doentes; sua psicose ameaça o tecido social, já perturbado por
tanta vertigem e desvario. Começando pelo governo. Em seu compromisso com o desastre, percebe-se
na presidente da República o fascínio pelo perigo. Seu governo tem
fixação pelo erro e atração pelo abismo. A reforma ministerial que ora
se anuncia é apenas mais um exemplo: não altera e, antes, reafirma a
rota permissiva e perniciosa do fisiologismo; talvez acredite que
percorrendo mil vezes o mesmo trajeto, possa chegar a lugar diferente.
Mas, não chegará mais a lugar algum, pois o caminho se esgotou.
A presidente Dilma Rousseff dispensa o pouco de excelência que havia no governo – Saúde e
Educação — para abrigar o baixo clero do baixo clero. Acredita que,
empilhando anões, possa construir um gigante. Cede a própria carne para
quem tem fome insaciável. Aquinhoadas suas correntes, o mais provável é
que o PMDB abandone a presidente na estrada, alguns quilômetros a
frente; distante da chegada.
À Dilma, mais valeria qualificar o
ministério, buscar interlocução com a sociedade, o empresariado; deixar
que pressionassem o Congresso. Mas, incorrigível, reluta e, ao mesmo
tempo, rende-se. Sem admitir erros, entrega-se refém à chantagem, à
agiotagem. Se é para cair, pior que seja de joelhos.
O PMDB, claro, dá vazão à índole do escorpião. As sinecuras da
explanada valem menos que o Poder de verdade, questão de tempo, na sua
lógica. Ao que tudo indica, os profissionais procrastinam o desenlace
que já anteveem; sabem que Dilma fortalecida será a ruína dos partidos.
Negociam espaços crescentes e generosos, mas na TV não há reciprocidade:
explicitamente, querem “tirar o Brasil do vermelho”.
Trata-se de um partido dividido, mas auto-referenciado, caso
particular de autismo político. No mundo do PMDB, não há vida sem o
PMDB; nem anima política sem o seu bafo. Uma penca de ministérios, a
vice-presidência, o controle da Câmara e do Senado… Nada parece bastar.
Vírus oportunistas nunca se fartam.
E nada é mais revelador dessa psicose do que a filiação de Marta
Suplicy. A escolha da senadora pelo partido de Sarney, Renan, Temer e
Cunha revela mais do que oculta: o narcisismo da estrela não se contém,
desde sempre encantado de si e jactante de uma apenas pretensa
liderança. Ilusão e megalomania que desnudam o óbvio: não foi o apelo da
ética que a afastou do PT, nem a pureza de princípios.
O ressentimento
juntou-se ao pragmatismo e juntos abraçaram o oportunismo: quando a água
entra pelos porões do barco que aderna, é hora de pular e vislumbrar o
bote, antes de todos; é a arte do náufrago. Prêmio Francesco Schettino —
memorável capitão do Costa Concórdia – de comportamento político.
Mas, é verdade, no PT não há voz capaz de um sonoro e respeitável
”Vada a bordo, cazzo!”. Nem à Marta, nem a ninguém. Como conter os
Schettinos se a própria legenda salta do Costa Concórdia do governo? Sem
o sinal verde da direção, a fundação oficial do partido guardaria o
momento e o método das críticas que faz à política econômica,
calcanhar-de-aquiles, do governo. Não exploraria de forma tão pouco
sutil a demência dos companheiros, no Executivo. O nobre Perseu Abramo
teria mais elegância e consideração.
O Lulo-petismo vive, assim, a esquizofrenia de não admitir ser o que,
de fato, é: o partido do governo e o governo do partido. Mesmo que Lula
e Dilma tenham desprezado a burocracia partidária — e obtido a servidão
por meio de vistas grossas que só viam névoa aonde havia a fumaça –,
partido e governo são indissociáveis, ainda que neguem mutuamente. Dupla
personalidade, confusão de sentimentos; o demônio reparte o indivíduo
entre razão e coração.
Resta o PSDB. Pobre PSDB, que sofre de dislexia tática e não
compreende o que se passa; que joga como “café-com-leite”; mirim, no
jogo dos grandes. Na TV, revela a vertigem chique – mas, igualmente
alucinante — dos tucanos: o óbvio de um denuncismo sem surpresas; o
escamotear das verdadeiras intenções (o impeachment); a saída populista
do ataque aos juros que, intimamente, já foram assimilados como
inevitáveis.
E, claro, o apoio à pauta bomba; é a negação de si. O sincericídio de Michel Temer traz mais estratégia que o insincericídio de
Aécio. Ainda que tucanos dispersos esforcem-se na reconstrução psíquica
do PSDB, sentado à beira do caminho, o partido é carona na desgraça e
no maquiavelismo alheio.
Nesse turbilhão psicótico, o país ainda não precisa de líder — não
está preparado para parir um; comprometeria, aliás, sua natureza. Sequer
analistas às mancheias fazem diferença – a começar pelo ceticismo
sensaborão deste texto. Tarja preta, o país necessita de um psiquiatra –
não um qualquer; mas um psiquiatra de altíssima qualidade; doctor
Freud.
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Para Carlos Melo, o país está precisando de um psiquiatra |
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